Ouvi um “–Meu Deus” de meu pai.
Subiu as escadas em choque e pegando minha mãe pelo braço, levou-a aos tropeções para sala da frente do sobrado velho que morávamos, descia as velhas escadas de madeira, aos saltos ignorando a vantagem gigantesca que suas longas pernas possuíam as pequenas pernas de minha mãe.
Desci curioso segurando a lateral da escada que era de velhas colunas de madeira em um formato circular curvilíneo como uma velha ânfora de vinho, passava meu rosto um a um dos vãos das colunas, tentando ver o alvoroço que os dois faziam lá em baixo, o clima estava quente, mas não exageradamente, pois o outono ainda produzia noites frescas no interior de São Paulo o que hoje já é efeito raro.Meu pai olhava fixamente a TV e um senhor de cabelos penteados para trás que brilhavam muito pelo uso exagerado de “gel” dizia palavras difíceis de entender, largando o peso no sofá de pernas de madeira da sala, vi os olhos de meu pai encher de lágrimas como quando em um estampido repentino batemos o dedinho do pé na quina da penteadeira. Virando-se com um rosto de susto, exaltou a minha mãe:
― Estamos perdidos Irina não teremos o que comer sem aquele dinheiro. Em voz calma, mas chorosa minha mãe virou e disse: ― Vamos tentar retirar o pouco que poderemos, depois tentaremos pensar no que fazer. Mas ele não estava satisfeito com a resposta, esperava uma solução mesmo que pelos rostos deles parecia improvável resolver o que o homem de cabelos penteados para trás havia acabado de anunciar.
Caminhou com “um certo Q” de desespero até o escritório de casa e com um ruído de bater de metais fechou a porta velha de maçaneta trabalhada, com os olhos marejados de lágrimas, mas parada ainda no meio da sala uma música tocava incentivando o Brasil na Copa do Mundo de 1990, enxugou as mãos no avental de chita que tinha um tom meu bege não sei se pelo uso diário ou pela qualidade duvidosa do tecido caminhou até a cozinha em passos curtos e lentos como se estivesse criando tempo para pensar no que fazer até sair do meu campo de visão.
Desci os degraus restantes que faltavam até a curva da escada para o ultimo lance a TV ligada chiava um pouco, pois meu pai tinha comprado uma antena nova, que lembrava muito um jacaré de boca aberta com uma enorme língua para fora, e não havia colocado de forma a receber bem o sinal, parecendo que a cada vento o sinal chiava um pouco mais.
Ainda assim não via minha mãe na cozinha fiquei pensando se deveria descer até ela, e resolvi continuar mais um pouco até o batente da porta de madeira da cozinha, descia as escadas quando escutei seus passos arrastados no chinelo voltando para sala paralisei não sabia se voltava ou continuava ali, bem mas minha duvida resolveu o problema por mim ela cegou a porta e me viu sentado no degrau final da escada ela caminhou para mim com os olhos vermelhos de choro ainda.
Encostou a mão em meu ombro e disse: ―Você não devia estar aqui, vamos para cima seu sábado começa cedo e você é um preguiçoso de mão cheia. Pegou carinhosamente em meu braço e levantou-me até minha cabeça ficar perto de sua barriga, olhei-a e não foi preciso perguntar, ela disse com os olhos fixos nos meus: ―Coisa de político meu filho, ninguém entende o que se passa na cabeça deles.
Caminhamos juntos até o meu quarto a casa velha era muito bem cuidada pela Dona Irina os tacos de madeira que contrastavam com as escadas do sobrado eram regularmente encerados com uma estrondosa enceradeira que mais parecia um disco voador com um longo cabo em forma de “T” o corredor estava decorado com quadrinhos do norte com barcos e pescadores desenhados rusticamente em telas baratas.
Passei para dentro de meu quarto com ela nas minhas costas ainda com a mão em meus ombros ela me virou e apertou minha cabeça contra sua barriga na tentativa de um abraço, deitei ajeitando minha bermuda vermelha feita por minha mãe, s elásticos já estavam meio soltos mas gostava muito delas, e ela saiu de novo pela porta, e sumiu no corredor eu mantinha meus dois bonecos preferidos debaixo da cama em minha caixa de brinquedos, mas brinquei por alguns minutos lembrando como o HE-MAN derrotava o MANDIBULA no desenho animado até adormecer.
No sábado de manhã acordei ainda com os bonecos em meu peito, arrumei a cama com um jeito desleixado e fui até a cozinha, passei em lentos passos pelo quarto da minha mãe e meu pai eles não tinham dormido certamente a cama só se via amassados no forro azul escuro de tricô, ainda com a imagem de ontem na mente fui até a escada, desta vez estava tudo tranquilo a TV desligada e um certo cheiro de pão com manteiga e café fresco vinha da cozinha.
Sentei a mesa e vi o olhar cansado da minha mãe, ela parecia envelhecida com tudo que acontecerá ontem sabia que tinha algo haver com dinheiro, porque lembro que quando mudamos para esta casa ouvi uma conversa entre meu pai e minha mãe, sobre como usando o dinheiro que tinha recebido ao sair da empresa que ele trabalhava poderíamos ter mais tranquilidade, e finalmente poderia dedicar-se somente a malharia que ele tinha montado havia alguns anos.
O Sr. Hiroyto era vendedor nato, do tipo que vende “geladeira para esquimó”, trabalhava em uma empresa fabricante de bonés para uniformes ou qualquer outro fim, um mestiço alto incomum para os padrões dos descendentes de japoneses do interior, calado calmo com uma testa marcada de preocupação, viajava muito ficava semanas sem ver minha mãe e eu, mas sempre trazia um presente na volta, seja um radinho de pilhas ou um saco com grandes cocos verdes do nordeste.
Chegava das viagens sentava em uma cadeira de tiras plásticas e sacudia um copo de whisky sem gelo que tomava antes de deitar para um sono longo antes de comer. O sono pós -viagens de meu pai era sagrado lembro que assistíamos TV controlando o volume com cuidado e mexendo delicadamente o grande pino prateado, para nunca acordá-lo com um escândalo de algum programa infantil, musica ou brincadeiras. Nada que provocasse muito barulho seria bem vindo era um acordo de trégua sem barulho, sem broncas.
Sentado a mesa olhava o café forte que minha mãe preparava e o pão aquecido no forno com uma generosa camada de manteiga, comi rapidamente com uma gula que já é da minha personalidade, escutei minha mãe recomendar: ―Não se demore para arrumar temos que encontrar seu pai ele esta nos esperando no mercadão, foi tomar café por lá, quer saber como todo mundo esta depois do noticiário de ontem. Arrumei calçando uma botinha de couro que era de estimação com uma calça jeans e uma camiseta de um verde escuro berrante com uma estampa enorme do HE-MAN.
Estávamos saindo de casa, caminhava pelo corredor que levava até a garagem, já podia escutar o ruidoso motor do Volkswagen de minha mãe esquentar o motor e uma batida de porta, o chamado em voz alta: ― Vamos estou já no carro, seu pai esta uma pilha vamos evitar deixá-lo mais nervoso. Sai correndo e quando me viu fez um trejeito de que não havia gostado dos trajes que havia escolhido, mas não protestou não sei se pela pressa, ou por não estar tão mal.
Acomodei no banco de couro da frente do “FUSCA”, mas ela logo jogou um olhar de reprovação, meio contrariado passei por meio dos bancos e fui para trás, do meio lado uma sacola de plástico de feira com uma alça redonda de um verde muito claro dividia o banco comigo, saímos sentido a ladeira que levava para o Mercado Municipal.
Os homens concentravam-se em uma pequena banca onde servia o típico café com leite e pastéis, minha mãe transitava pelas bancas de frutas, legumes e verduras. Na TV erguida acima dos balcões uma mulher de cabelo desgrenhado tentava justificar alguma coisa que o homem com cabelos empapados de “gel” anunciará vi umas imagens de pessoas se aglomerando nos bancos, brigas e tumultos, um dos homens encostados no balcão declamava como poesia.
―Só assim mesmo para melhorar essa coisa de sobe e desce de preço confio que vai dar certo, só agindo radicalmente para solucionar o país, assim como esta não pode ficar.
Energeticamente alguém respondeu do outro lado.
―Fomos roubados isso sim, e desta vez nem mesmo esconderam, foram lá e tiram na cara dura, se o país vai melhorar não sei, mas minha cunhada tem vivido de juros da poupança, o meu irmão esta desempregado, como eles vão sobreviver sem o dinheiro deles por dezoito meses.
Um tumulto de opiniões tomou a frente da banca, meu pai tinha acabado de pegar um grande pastel quadrado de carne e uma garrafinha de guaraná. Saia do meio da discussão, colocando em minhas mãos o pastel e a guaraná com dois canudinhos, um amarelo e outro vermelho.
Aproximando da minha mãe ele disse em um tom tão baixo de voz que tive de esticar a orelha para escutar. ―Não compre muito precisamos ver se conseguiremos tirar o dinheiro do banco caso contrário não teremos muito para esse mês.
Dando um grande olhar racional a sua sacola ela perceptivelmente estava tentando calcular o quanto tinha pego até agora, e respondeu rapidamente. ―Eu sei comprei só o essencial, mas vamos conseguir sim retirar nosso dinheiro ou se não passaremos fome. Olhe ela disse que vão analisar caso por caso, o nosso caso é extremo.
Com um olhar desacreditado meu pai voltou ao balcão e pediu um café ainda maior que o anterior.
Aquele dia o murmurinho da feira era maior perceptivelmente, era um velório gigante muitos lamentos sobre sonhos que seriam adiados, sobre casamentos que não seriam realizados, sobre obras que ficariam ao vento e o tempo. Alguns diziam em alto bom som.
― Por isso que não tinha nada guardado nos bancos, esses grandes ladrões minha mãe sempre disse nunca confie em agiotas e os bancos são grandes ou gigantescos agiotas.
Logo vinham as respostas.
―Mas ninguém podia guardar dinheiro de baixo do colchão, cada hora temos um juros diferente quem não tinha o dinheiro no banco, só tinha um enorme monte de capim sem valor.
E um novo bate boca estava criado, minha mãe passou pelo homem que não gostava de agiotas, mas eu não imaginava o que exactamente era um agiota, logo se fez uma imagem de um homem mal com uma camisa aberta até o meio do peito com uma longa corrente de ouro a mostra, segurando o dinheiro de todos e rindo.
Meu pai olhou minha mãe com os dizeres “vamos embora” traduzidos em uma linguagem muda que só ele sabia dizer, ela arrumou as compras na sacola verde pediu-me minha mão e foi caminhando para o final do corredor de bancas amontoadas, foi quando ela viu um rosto conhecido e parou subitamente, saudando com um amigável. ―Dona Mitiko como esta o Hiroshi san.
Um olhar triste se abateu sobre a senhora de rosto redondo e olhos bem puxados.
―Minha filha Hiroshi esta internado desde ontem a noite, ele ficou muito nervoso começou a dizer quanto ingrato era este país e que estava trabalhando aqui desde menino e tudo que tinha eles tinham o roubado, tentei amenizar mas ele passou mal e esta no Hospital Sta. Isabel.
Um olhar triste se abateu em minha mãe que só conseguiu imediatamente ficar cabisbaixa, e dizer um sinto muito quase inaudível. Os olhos da velha senhora estavam vermelhos e cansados assim como a maioria dos visitantes do Mercadão naquele sábado.
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